Thursday, April 19, 2007

Como condenar alguém que não se sabe quem é?

Material para uma aula sobre nomeação e referência, por exemplo: Folha de São Paulo, 17 de abril de 2007, C3. Conta a história de um sujeito que foi preso roubando umas esquadrias. Levado para a delegacia e interrogado durante várias horas, comprovou-se que o dito sujeito "não fala, não parece conhecer linguagem escrita ou falada, não se comunica por sinais e nem por mímicas. X não tem nome ou numero de inscrição no Instituto de Identificação...". (...) Ninguém sabe o que fazer com X". Toda a matéria é ótima, pois levanta os problemas dos juízes e promotores, que se perguntam como vão condenar uma pessoa que não se sabe quem é. Um investigador teve a idéia de batizá-lo.
O Código de Processo Penal diz que "a impossibilidade de identificacão do acusado com o seu verdadeiro nome ou outros qualificativos não retardará a ação penal, quando certa a identidade física". Bueno, o problema é que sobre a identidade física apenas se podem dizer coisas como "este homem", "o homem branco, com 1.60 de altura, etc" ou ainda "o homem encontrado na casa tal roubando esquadrias".
Depois dizem que são os filósofos que exageram nas ficções.

6 Comments:

Blogger Frank said...

Ronai,
Não conheço muito do debate sobre identidade pessoal, mas fiz, abaixo, uma pequena análise da sua postagem, para alimentar a discussão.

O objeto do Direito é o comportamento de PESSOAS. O trecho citado do Código de Processo Penal parece estar supondo uma distinção entre identidade pessoal e identidade física e uma distinção entre existência e reconhecimento de identidade, seja pessoal seja física. Assim, ele estaria dizendo que "a impossibilidade de identificação do acusado com o seu verdadeiro nome ou outros qualificativos [reconhecimento de identidade pessoal] não retardará a ação penal, quando certa a identidade física [o reconhecimento da identidade física].", ou seja, ele estaria dizendo que o reconhecimento da identidade pessoal não é condição necessária para o reconhecimento da identidade física. Mas, também, tácito no texto, que o reconhecimento da identidade física é condição suficiente para o reconhecimento da identidade pessoal. O jurista teria dificuldades para aplicar essas teses a Deus, pois, dizem, Nele temos três identidades pessoais numa única identidade extra-física. Mas, deixemos as coisas divinas de lado e pensemos nos casos de múltipla personalidade: aí também temos mais de uma identidade pessoal numa única identidade física, e as teses do jurista não se sustentam. Moral da história: às vezes uma ficção ajuda; os jusFILÓSOFOS Hans Kelsen (no caso da norma fundamental) e Alf Ross (no caso dos direitos subjetivos) que o digam!

6:19 AM  
Blogger Alexandre N. Machado said...

Caros Frank e Ronai,

Também não conheço muito essa discussão sobre identidade pessoal.

Interessante esse caso da múltipla personalidade. Tenho a impressão que a lei quer prever o seguinte caso, entre outros: se flagramos um sujeito roubando quando uma das suas personalidade está "de posse" do corpo, então mesmo que na delegacia uma outra personalidade assuma o controle, a prisão daquele corpo garantirá que a personalidade criminosa fique presa (salvo, é claro, se for uma personalidade que possa migrar de um corpo para outro, se é que faz sentido dizer isso).

Não me parece que o problema que o caso de X oferece seja (ou seja apenas) um problema de identidade pessoal. Parece mais um problema de se determinar se X satisfaz certas condições da imputabilidade legal. Uma pessoa humana, para os propósitos legais, possui um corpo. E é por meio desse corpo que sua identidade pode ser rastreada no espaço e no tempo, mesmo no caso de múltiplas personalidades. O problema no caso de X é que não sabemos se ele, seja quem for, sabe o que está fazendo, se conhece as leis, etc. Forjar um nome, mesmo que provisório (veja-se os casos de crianças abandonadas), para facilitar a referência àquela pessoa, seja quem for, me parece o de menos.

Grande abraço

12:46 PM  
Blogger Frank said...

Caros Alexandre e Ronai,

no caso de múltiplas personalidades em que uma das personalidades comete uma ação juridicamente imputável, e uma outra personalidade não comete uma ação juridicamente imputável, acredito que o jurista se encontra diante daquilo que ele qualifica como "conflito jurídico" e "antinomia jurídica", pois o mesmo corpo físico deve sofrer uma sanção e não deve sofrer uma sanção. Observar que, pelas leis da lógica deôntica, não deve sofrer uma sanção NÃO IMPLICA deve não sofrer uma sanção, mas deve não sofrer uma sanção IMPLICA não deve sofrer uma sanção! Mas, acredito que o problema não é apenas da cadeia de imputabilidade legal, embora as conseqüências práticas aí sejam maiores. Também em relação à cadeia causal encontramos um problema semelhante: quem é o agente da ação? Afinal, a ação é obra do corpo físico e não apenas da personalidade, ou não? O corpo físico também sentirá, nalguns casos, os efeitos da ação.

Um grande abraço.

3:26 AM  
Blogger Ronai Rocha said...

Prezados Frank e Alexandre, são excelentes as observações de vocês, que me fizeram ver alguns aspectos sobre os quais não havia pensado. Me dei conta, retrospectivamente, que o titulo que eu coloquei tem uma ambiguidade, afinal, como vocês lembram, há um sentido no qual se sabe quem é o sujeito, e por ali vai a ação de se prevenir que X continue fazendo o que quer que seja... Quando eu li a matéria, eu pensei mais na hipótese que o sujeito de fato tenha ficado desprovido de linguagem, etc, e que aparecesse alguém dizendo que se trata de Fulano das Abóboras, nascido em tal e criado em qual; ou seja, um caso que alimentaria as discussões sobre nomeação e cadeias causais, desde um "batismo", que nos levam até uma referência. Mas de fato vocês tem razão, o ponto da identidade pessoal é o prioritário, na medida em que a questão dos policiais e dos juizes é decidir o que fazer com X. O caso pode ir para o lado que Alexandre aponta, a imputabilidade.

5:49 AM  
Blogger Unknown said...

Caro Frank,

Tens toda razão. No caso das múltiplas personalidades, se considerarmos cada personalidade como um critério para diferença pessoal, se punirmos justamente uma pessoa vamos estar punindo a outra injustamente. O que quis dizer é que o caso relatado na reportagem do jornal, o caso do sr. X, me parecia um caso de dúvida sobre a imputabilidade, pois nele não se fala nada sobre múltipla personalidade, mas apenas se levantam dúvidas sobre se o sr. X sabia, do ponto de vista legal, o que estava fazendo, dada a dificuldade de comunicação e de se saber a história da pessoa em questão. Agora imagine que uma pessoa seja presa em flagrante, que seu comportamento não exiba sinais de múltipla personalidade, que ela se comunique em português perfeitamente, mas que não saibamos nada sobre a história dessa pessoa, sequer seu nome. Agora suponha que perguntada sobre se sabia o que estava fazendo, ela responda que sabia que estava roubando e que isso é punido pela lei. O que impediria a imputação, nesse caso?

9:02 AM  
Blogger Frank said...

Caro Alexandre,

O curioso do Direito é que o cidadão não pode alegar ignorância da lei. Ela vige mesmo no caso em que aqueles a quem ela é dirigida a ignorem. Casati e Varzi têm, em "Simplicidades Insolúveis", uma história filosófica ótima sobre o assunto: A regra número 1. A regra mencionada no título é, em dado momento, enunciada pelo guarda de trânsito da seguinte maneira: "Infelizmente a lei é assim. O cidadão não tem o direito de ignorá-la." Ou seja, mesmo que uma personalidade ignore o que a outra fez, isso não muda a questão básica: quem é imputável é somente a personalidade ou a personalidade e seu corpo? Lembremos que nem toda pessoa jurídica tem "corpo" capaz de ter privações, embora sempre um corpo sofra a sanção, ainda que seja o corpo do responsável por uma empresa.

Um grande abraço.

7:58 AM  

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