Monday, June 26, 2006

17. Hume e o delírio filosófico

Uma das tantas passagens famosas do “Tratado da Natureza Humana” de Hume é aquela onde ele descreve a “melancolia e o delírio filosófico”. Trata-se de um texto muito estudado. Recomendo, sobre esse tema, o livro de Barry Stroud, Hume; o artigo de M. F. Burnyeat. Can the Sceptic live his scepticism? e ainda o livro de Putnan. Renewing Philosophy, p. 135. Transcrevi alguns trechos que antecedem a passagem para que ela tenha um melhor contexto. O bom mesmo é ler todo o capítulo no “Tratado”.
“Em um primeiro momento sinto-me assustado e confuso com a solidão desesperadora em que me encontro dentro de minha filosofia; imagino-me como um monstro estranho e rude que, incapaz de misturar-se com os demais e unir-se à sociedade, foi expulso de todo o contato com os homens e deixado no absoluto abandono e desconsolo. De boa vontade, aproximar-me-ia da multidão em busca de abrigo e calor, mas não consigo convencer a mim mesmo a me juntar a ela, tendo tal deformidade. Clamo a outros para que se juntem a mim, para formarmos um grupo à parte; mas ninguém me dá ouvidos. Todos mantém distância, temendo a tempestade que se abate sobre mim de todos os lados. (...)
Já assinalei, com efeito, que quando o entendimento atua por si mesmo e de acordo com seus princípios mais gerais, se autodestrói por completo e não deixa nem o menor grau de evidência em nenhuma proposição, seja da filosofia ou da vida ordinária. (...)
Mas que foi que eu disse? Que as reflexões muito sutis e metafísicas exercem pouca ou nenhuma influencia sobre nós? Dificilmente poderia deixar de me retratar e de condenar essa minha opinião com base em meu sentimento e experiência presente. A visão intensa dessas variadas contradições e imperfeições da razão humana me afetou de tal maneira, e inflamou minha mente a tal ponto, que estou prestes a rejeitar toda crença e raciocínio, e não consigo considerar uma só opinião como mais provável e verosssimil que as outras. Onde estou, o que sou? A que causas devo minha existência e a que condição retornarei? Que favores buscarei e a que furores devo recear? Que seres me rodeiam, sobre qual tenho influência ou qual tem sobre mim? Todas essas perguntas me confundem, e começo a ver-me na condição mais deplorável que se possa imaginar, privado absolutamente do uso de meus membros e faculdades.
Felizmente ocorre que, ainda que a razão seja incapaz de dissipar essas nuvens, a natureza mesma é suficiente para este propósito, e me cura dessa melancolia e desse delírio filosófico, ou bem relaxando minha concentração mental ou bem por meio de alguma distração: uma impressão vivaz de meus sentidos, por exemplo, me faz esquecer todas essas quimeras. Saio para jantar, jogo uma partida de gamão com meus amigos, bato um papo e sou feliz com meus amigos; e quando volto para essas especulações depois de três ou quatro horas de distração, me parecem tão frias, forçadas, ridículas que não me sinto com disposição para me aprofundar mais nelas."
(Hume. Tratado da Natureza Humana, Livro I, Parte IV, Seção VII)

0 Comments:

Post a Comment

<< Home