Thursday, May 17, 2007

Em tempo:

"Será que sob pretexto de que não existe teoria satisfatória do organismo como totalidade, nem mesmo conceito bem definido de saúde, pensaríamos em proibir aos médicos a prática da medicina? (Cornelius Castoriadis, IIS, p. 109)

As profissões impossíveis (3)

Tirei a manhã da quinta para reler "A Instituição Imaginária da Sociedade" (1975), de Cornelius Castoriadis, que é minha outra inspiração para pensar sobre esse tema das profissões impossíveis. Não vou contar sobre o livro, a história seria muito longa. Vou direto ao ponto no qual Castoriadis reclama da forma pouca e estreita que a tradição filosófica tem pensado a noção de "fazer" e seus correlatos. Ao longo do livro ele faz várias reflexões sobre o tema. Indico aqui as mais contundentes, a meu ver. Em primeiro lugar, ele sugere uma forma de situar o fazer humano em uma espécie de grade, na qual os extremos são, de um lado, a ação reflexa (não dependente de nenhum saber) e, de outro, a técnica (materializada em objetos, por exemplo), que supõe uma certa exausitividade do saber. Veja:

“O mundo histórico é o mundo do fazer humano. Esse fazer está sempre em relação com o saber, mas esta relação precisa ser elucidada. Para esta elucidação vamos apoiar-nos sobre dois exemplos extremos, dois casos limites: a “atividade reflexa” e a “técnica”. Podemos considerar uma atividade humana “puramente reflexa”, absolutamente não consciente. Tal atividade não teria, por definição, nenhuma ligação com um saber qualquer. Mas também é claro que não pertence ao domínio da historia. Podemos, no extremo oposto, considerar uma atividade “puramente racional”. Essa se apoiaria sobre um saber exaustivo ou praticamente exaustivo de seu domínio; entendemos por praticamente exaustivo que toda questão pertinente para a pratica e podendo emergir nesse domínio seria resolúvel. Em função desse saber e em conclusão dos raciocínios que permite, a ação se limitaria a colocar na realidade os meios dos fins que visa, a estabelecer as causas que levariam aos resultados desejados. Um tal tipo de atividade está aproximativamente realizado na historia, é a técnica." (p. 91)

Entre esses dois extremos - a atividade reflexa e a técnica - é que se passa o principal do teatro humano. Segue o texto de Castoriadis:

"Ora, o essencial das atividades humanas não pode ser captado nem como reflexo nem como técnica. Nenhum fazer humano é não consciente; mas nenhum poderia continuar nem por um segundo, se estabelecêssemos a exigência de um saber exaustivo prévio, de uma total elucidação de seu objeto e de seu modo de operar. Isso é evidente para a totalidade das atividades ‘triviais’ que compõem a vida quotidiana, individual ou coletiva. Mas isso é também assim para as atividades mais ‘elevadas’, as mais plenas de conseqüência, aquelas que envolvem diretamente a vida de outros bem como as que visam as criações mais universais e mais duráveis." (p. 91)

Ele oferece dois exemplos que não por acaso correspondem a duas das profissões 'impossíveis' de Freud. Não preciso lembrar que a outra profissão impossível de Freud termina por ser o tema de toda a primeira parte do livro, dedicada ao exame do fracasso dos projetos revolucionários que invocavam o marxismo como teoria exaustiva da sociedade e seu governo. Vejamos os exemplos:

"Educar uma criança (quer como pai ou como pedagogo), pode ser feito com uma consciência e uma lucidez mais ou menos grandes, mas é por definição impossível que isso possa ser feito a partir de uma elucidação total do ser da criança e da relação pedagógica. (...) O essencial do tratamento, assim como o essencial da educação, corresponde à própria relação que se irá estabelecer entre o paciente e o médico, ou entre a criança e o adulto, e à evolução desta relação, que depende do que um e outro farão. Nem ao pedagogo, nem ao médico pede-se uma teoria completa de sua atividade, que aliás eles seriam incapazes de fornecer. Não diremos por isso que se trate de atividades cegas, que educar uma criança ou tratar um doente seja jogar na roleta. Mas as exigências com as quais nos confronta o fazer são de outra ordem." (92)

O nome desse lugar? Chame como quiser, desde que entenda o ponto. Castoriadis chama isso de "praxis"; poderia chamar simplesmente de "ação humana". Veja a caraterizacão que ele faz:

"Chamamos de práxis este fazer no qual o outro ou os outros são visados como seres autônomos e considerados como o agente essencial do desenvolvimento de sua própria autonomia. A verdadeira política, a verdadeira pedagogia, a verdadeira medicina, na medida em que algum dia existiram, pertencem à práxis."

Eis aqui, agora nomeadas, as "profissões 'impossíveis'", apresentadas com a seriedade que se pode esperar de um grande pensador. É isso, ter ou não a consciência e a lucidez possível. Ou então, abobrinhas sobre o impossível, chocolate pela notícia.

Wednesday, May 16, 2007

As profissões impossíveis (2)

Achei. Freud faz, em sua obra, duas menções en passant sobre as profissões impossíveis. A passagem mais famosa está mencionada na postagem abaixo. O outro lugar é o "Prefácio a 'Juventude Desorientada', de Aichhorn, publicado no volume XIX da Standard Edition, edição brasileira, Imago, 1976, página 341. Freud escreve sobre o emprego da psicanálise na educação, em especial sobre a expectativa que "o interesse psicanalítico nas crianças beneficiaria o trabalho da educação (...)". Freud faz uma pequena frase sobre o objetivo da educação que faria um grande fracasso se fosse dita hoje, diante dos auditórios das faculdades: segundo ele, o objetivo da educação é "orientar e assistir as crianças em seu caminho para diante e protegê-las de se extraviarem".
De minha parte acho que a frase de Freud é uma pérola de sabedoria. Mas o humor dos tempos vai para outro lado, como se sabe.
Bom, vamos para a passagem:
"Minha cota pessoal nessa aplicacão da psicanálise foi muito leve. Em um primeiro estádio, aceitei o bon mot que estabelece existirem três profissões impossíveis - educar, curar e governar - e eu já estava inteiramente ocupado com a segunda delas. Isto, contudo, não significa que desprezo o alto valor social do trabalho realizado por aqueles meus amigos que se empenham na educacão."
Nem poderia desprezar, dá vontade de acrescentar, pois os educadores estão emparelhados com ele, na tal da impossibilidade. Nessa passagem, de 1919, como se pode ver, a palavra 'impossíveis' é usada sem aspas, ao contrário do que ocorre no texto de 1937. Na literatura que consultei a respeito dessas passagens não há notícia de outro autor que diga algo parecido, por escrito e que estivesse sendo citado. Resta concluir que Freud, com as aspas, em um caso, e com a idéia de "aceitar um 'bon mot', c'est a dire, une boutade, acrescentaria eu, estava suspendendo o uso comum de 'impossível'.
Pois é disso que se trata, no final das contas, de um uso especial, que resta por ser melhor esclarecido.

Monday, May 14, 2007

As profissões impossíveis

O local de origem daquilo que poderia ser chamado de um "topoi" sobre "as profissões impossíveis" (do qual a idéia da filosofia como um "dever do impossível" é um dos casos) está em Freud, tanto quanto sei. No trabalho de 1937, intitulado "Análise terminável e interminável", parte VII, Freud fala sobre as "profissões 'impossíveis'". Transcrevo:

"Detenhamo-nos aqui por um momento para garantir ao analista que ele conta com nossa sincera simpatia nas exigências muito rigorosas a que tem de atender no desempenho de suas atividades. Quase parece como se a análise fosse a terceira daquelas profissões ‘impossíveis’ quanto às quais de antemão se pode estar seguro de chegar a resultados insatisfatórios. As duas outras, conhecidas há muito mais tempo, são a educação e o governo."

Nesse ponto do texto o editor informa que há uma passagem semelhante a essa, na Standard Edition, 19, 273. No momento estou sem meu exemplar. Quando puder eu incluo a citação. O texto segue assim:

"Evidentemente, não podemos exigir que o analista em perspectiva seja um ser perfeito antes que assuma a analise, ou em outras palavras, que somente pessoas de alta e rara perfeição ingressem na profissão. Mas onde e como pode o pobre infeliz adquirir as qualificações ideais de que necessitará em sua profissão? A resposta é: na análise de si mesmo, com a qual começa sua preparação para a futura atividade. Por razões praticas, essa análise só pode ser breve e incompleta. Seu objetivo principal é capacitar o professor a fazer um juízo sobre se o candidato pode ser aceito para formação posterior. Essa análise terá realizado seu intuito se fornecer àquele que aprende uma convicção firme da existência do inconsciente, se o capacitar, quando o material reprimido surge, a perceber em si mesmo coisas que de outra maneira seriam inacreditáveis para ele, e se lhe mostra um primeiro exemplo da técnica que provou ser a única eficaz no trabalho analítico. Só isso não bastaria para sua instrução, mas contamos com os estímulos que recebeu em sua própria análise não cessem quando esta termina, com que os processos de remodelamento do ego prossigam espontaneamente no individuo analisado, e com que se faça uso de todas as experiências subseqüentes nesse recém-adquirido sentido. Isso de fato acontece e, na medida em que acontece, qualifica o individuo analisado para ser, ele próprio, analista.

Esse parágrafo que citei está encompassado por duas frases que vale a pena lembrar. A primeira é essa:
"Não devemos esquecer que o relacionamento analítico se baseia no amor à verdade, isto é, no reconhecimento da realidade - e que isso exclui qualquer tipo de impostura ou engano."

A frase que está na seqüência é essa:
"Hostilidade, por um lado, e partidarismo, por outro, criam uma atmosfera desfavorável à investigação objetiva".

Eu procuro não ser hostil ou partidário; devo dizer, no entanto, que não pude deixar de me lembrar de Renato Zamora Flores e seu admirável artigo, "A complexidade está nua e é muito magra", publicado na revista Ciência & Ambiente, numero 28, janeiro/julho de 2004: ali, Renato mostra certos padrões de estudos que, mutatis mutandis, parecem também valer para o, como diria Freud, pobre e infeliz campo do ensino da filosofia.
Leiam o Renato que vale a pena!