Wednesday, June 13, 2007

Uma concepção minimalista de "consciência crítica"

Uma posição muito comum entre os defensores da presença da Filosofia no currículo consiste na afirmação das boas conseqüências formadoras da disciplina; dizemos que a disciplina desapareceu das escolas brasileiras por pressão do regime militar, que desejava afastar das escolas uma disciplina formadora de consciência crítica. Essa visão sobre a função da disciplina ainda é muito difundida mas já não mais se sustenta, se com ela queremos dizer que “formar consciência crítica” é um apanágio da disciplina de Filosofia. Qualquer consulta aos documentos curriculares das demais áreas de conhecimentos escolares mostra que elas têm uma clara percepção da fatia de trabalho de cada uma na "formação crítica e cidadã", como diz a lei.
Como diria o Marquês de Sade, precisamos ainda fazer um esforço adicional se queremos vencer a inércia de um jargão; apenas falar em “formar consciência crítica” sem mostrar conteúdos, instrumentos e metodologias específicas soa vazio. Nos congressos sobre ensino de filosofia é nítida a sensação de impaciência com o que parece ser o refúgio fácil para a falta do que dizer. Assim, precisamos, entre outras coisas, revisar essa noção de consciência crítica para melhor compreender porque todas as demais disciplinas partilham conosco esta responsabilidade.
Como podemos caracterizar a natureza dos questionamentos filosóficos? Sabemos que a Filosofia não pode, sem controvérsias, ser vista como uma disciplina empírica. Por mais que possamos ter simpatia para com os programas de naturalização ou de redução da Filosofia, devemos admitir que eles surgem como provocações ao debate, já que, de uma ou de outra forma, ainda trabalhamos honrando o essencial da herança socrática: quer a Filosofia seja entendida como uma “investigação racional mediante conceitos” (como diz Kant, na Lógica), quer como uma atividade de questionamento das nossas convenções e imaturidades, ela ocupa um espaço de investigação que não se confunde com o saber positivo sobre as diversas e particulares dimensões da realidade. Apesar desse tipo de consenso, a caracterização em detalhes do espaço peculiar da Filosofia – e da aula de Filosofia no ensino médio - é uma discussão que parece ser interminável.
A caracterização da Filosofia como pensamento “crítico” tem hoje apenas um empobrecido valor de jargão na medida em essa virtude é reivindicada por todas as áreas de ensino. Já não é mais possível ao professor de Filosofia imaginar sua disciplina como a guardiã preferencial da consciência crítica dos estudantes; o professor de História e Artes e Educação Física e Física e Química e Geografia e Português e Biologia e todos os demais consideram-se formadores de consciência e cidadania e pedem ao professor de Filosofia que faça sua parte específica, por exemplo, ajudando o aluno a ter mais (apenas) consciência a respeito da estrutura da argumentação apresentada em suas escritas e leituras, quaisquer que sejam. Os sociólogos, físicos, químicos, biólogos, historiadores, geógrafos, os artistas não se vêem como atores secundários na “formação crítica e cidadã” pois entendem que saber mais e melhor sobre a realidade social, física, química, biológica, histórica, geográfica e artística tem tudo a ver com a calibragem de nossos juízos valorativos; para todos eles as relações entre as nossas crenças factuais e nossos juízos morais são bem mais complexas do que sonha certa filosofia.
Dito isto, como devemos entender a “criticidade”? A resposta-padrão que temos é que se trata de uma habilidade, de uma capacidade, de um exercício de distanciamento, de suspensão de juízo, de mensuração de conseqüências, de melhor exame; trata-se de uma retirada do comércio da vida comum, para submetê-la a um escrutínio circunstanciado. A descrição soa familiar, mas se olhamos para ela com algum distanciamento vemos que ela se aplica sem retoque ao trabalho dos cientistas, físicos, químicos, biólogos, historiadores, sociólogos, geógrafos, artistas, escritores. Isto é assim porque ter “espírito crítico” parece ser uma outra forma de ver uma característica interna e intrínseca de nosso aparato cognitivo, que pode ou não ser acionada, em graus e proporções diferenciadas.
Vou chamar isso de uma visão deflacionista da “consciência crítica”, que diz que ela é uma habilidade característica dos seres humanos. Ela é, de um lado, uma capacidade, uma virtude, fruto de aprendizado; de outro, todo ser humano a possui em grau mínimo, ao menos, pelo simples fato que todos nós somos essencialmente dependentes de informações para orientar as nossas decisões cotidianas. A tarefa de administrar informações exige uma espécie de mecanismo ou filtro de controle ou validação das informações que recebemos. Nesse processo de testagem de informações existem dois pontos extremos: de um lado, não é razoável acreditar em tudo; igualmente, não é razoável duvidar de tudo. Assim, ser crítico, é, em certo sentido, ser racional, e isto quer dizer, entrar na posse de uma habilidade conquistada às penas, duras ou macias. A razão é uma virtude a ser exercida e não uma entidade pronta.
Alguém poderia lembrar aqui o caso das sociedades tradicionais, que parecem criar mecanismos que dificultam o distanciamento e a discussão daquelas afirmações que dizem respeito à sua identidade de base, regras e normas sociais fundamentais. Nelas, as normas sociais são justificadas de forma vertical ou autoritária. Essa lembrança apenas seria relevante se estivéssemos convencidos, mediante argumentos empíricos, que existem nas sociedades contemporâneas bolsões de tradicionalismo que impedem formas mínimas de questionamento. Mesmo que isso fosse razoável, deve-se lembrar que mesmo as justificações autoritárias, na medida em que devem justificar as condutas moralmente boas, parecem deixar uma porta aberta para a dúvida e para a crítica, pois pode-se sempre (perguntar se as normas são boas porque Deus as promulgou ou se Deus as promulgou porque são boas. Trata-se do problema do Eutífron, como lembra Tugendhat (2002).
O que estou procurando caracterizar aqui é um argumento clássico que sustenta que há uma relação ao mesmo tempo essencial e trivial entre “conhecimento” e “criticidade”. Em certo sentido essa relação é trivial porque se trata apenas da caracterização de uma das conseqüências da diferença entre a operação de compreensão (no nível do significado e da linguagem) e a operação de conhecimento (no nível da referência e do mundo). A estrutura da mente humana é tal que dependemos da posse de conhecimentos (no sentido tradicional de crenças que são acompanhadas de justificações adequadas), e não apenas de crenças; isso supõe o funcionamento de capacidades, mecanismos cognitivos e procedimentos de verificação que colocamos em operação para que ocorra a passagem da crença para o conhecimento. A “criticidade”, na medida em que é compreendida como a capacidade de distanciamento, de suspensão de juízos, é um dos componentes da nossa estrutura noética. O fato de alguém se declarar “crítico” tem uma relação externa e acidental com a adesão a uma visão de mundo, por exemplo. Por outro lado, a Tabela Periódica dos Elementos ou o quadrado das oposições pode ser uma fonte de liberdade.

Thursday, June 07, 2007

Os pólos da Filosofia

A discussão de conteúdos mínimos para o ensino de Filosofia por vezes provoca um conflito entre os partidários de um ensino fortemente apoiado em temas de lógica e argumentação e os defensores de um ensino voltado para temas de ética e política. As razões desse conflito são muitas e não as discutirei aqui; elas tem a ver com uma tradição de mal-formação em lógica, com as motivações pessoais do estudante em sua opção por Filosofia, com dificuldades internas ao ensino de lógica, etc. Esse tipo de conflito tem outras ramificações, pois por vezes ele é exportado para grupos de autores e escolas; assim, não é raro se colocar de um lado autores como Aristóteles e Kant, caracterizando-os pelo compromisso de elucidação sistemática e rigorosa dos aspectos metafísicos fundamentais da realidade; a Filosofia é tomada como o campo da “investigação racional mediante conceitos”. De outro lado, coloca-se uma tradição de tipo socrática, comprometida com uma avaliação de nossas imaturidades, com o exame e questionamento de nossas ações, dos paradoxos e dos dilemas com os quais eventualmente nos deparamos. Nem tudo é conflito nesse panorama. Um traço comum a essas tradições é o fato que nenhuma delas se confunde grosseiramente com o saber positivo sobre as diversas e particulares dimensões da realidade. Nesses tempos de retorno do ensino de Filosofia no nível médio cabe perguntar se essas oposições são excludentes.
Miles Burnyeat, em um artigo em que avalia livros recentes sobre sobre Platão, introduziu um vocabulário que eu gostaria de projetar nesse contexto de ensino de Filosofia. Ele diz que a principal dificuldade de escrever sobre Platão está em se “combinar a profundidade e a força da visão platônica com a sutileza socrática dos argumentos mediante os quais ela é apresentada”. (Burnyeat, 1979). Os diálogos de Platão, ele segue, são uma “mescla milagrosa de imaginação filosófica e lógica”. Assim, “argumento”, que indica a província da lógica, e “visão”, indicando a imaginação filosófica, seriam os pólos indispensáveis da boa reflexão filosófica. Como diz Burnyeat, “o intérprete [de Platão] deve de algum modo responder a ambas, pois se a visão imaginadora é separada dos argumentos ela se torna uma postura grandiloqüente, e os argumentos por si mesmos ficam áridos, o mero esqueleto de uma filosofia” (Burnyeat, 1979).
Essas palavras de Burnyeat, em especial o apelo que ele faz ao conceito de “visão imaginadora” me fizeram lembrar uma observação semelhante de Stanley Cavell sobre as perguntas da filosofia que criam o cenário no qual nossa vida é submetida à nossa imaginação. A ocasião da filosofia na minha vida, diz ele, é a do
exame dos critérios de minha cultura, de forma a poder confrontá-los com minhas palavras e minha vida, da forma como a levo e da forma como posso imaginá-la; e ao mesmo tempo confrontar minhas palavras e vida, na forma como as levo, com a vida que as palavras de minha cultura podem imaginar para mim: confrontar a cultura consigo mesma, ao longo das linhas nas quais ela se encontra em mim.” (Cavell, 1979, p. 125)
Nessa passagem encontramos elementos que vão além das sugestões de Burnyeat, mas aqui também surge essa dualidade entre exame de critérios e o exercício de nossas capacidades de imaginação, como se ambos fossem parte de um único e mesmo movimento que combina as duas atividades, examinar e imaginar. Essa dualidade do trabalho filosófico pode indicar uma direção para pensar a Filosofia de uma forma que promova um bom encontro com algumas de suas ambigüidades.
Essa forma de ver a Filosofia – a metáfora que me ocorre é de vê-la como se fosse um globo (ou uma pilha!) dotado de pólos – tem um antecedente célebre. Na obra de Kant encontramos a mesma direção apontada acima nos textos de Burnyeat e Cavell. Ela consiste em ver a Filosofia como uma atividade constituída por uma dualidade tão essencial à natureza da mesma quanto aquela mais conhecida constituída pela sensibilidade e pelo entendimento, sem os quais não há o conhecimento humano: “Nenhuma dessas propriedades deve ser preferida à outra”, diz Kant. E disso se seguiria: por sua vez, a Filosofia tem duas propriedades, sistematicidade e imaginação.
Não importa muito se usamos esta ou aquela palavra para designar essas propriedades. Podemos chamá-las de “argumento”, “lógica”, “sistematicidade” e “visão”, “imaginação”. Kant, ao final da Crítica da Razão Pura, chama a primeira dimensão de “escolástica” (“conceito escolástico de Filosofia”, “Schulbegriff”) e a segunda de “conceito cósmico de Filosofia ou ainda, a dimensão “cosmopolita” ou “de mundo” (Weltbegriff):
Até aqui, no entanto, tratava-se tão-somente de um conceito escolástico de Filosofia, ou seja, o conceito de um sistema de conhecimento que só é procurado como ciência, sem que se tenha por finalidade algo mais que a unidade sistemática desse saber e portanto a perfeição lógica do conhecimento. Mas ainda existe um conceito cósmico (conceptu cosmicus) que sempre foi tomado como o fundamento do termo Filosofia, principalmente quando por assim dizer se o / 867 / personificou e se o representou como um arquétipo no ideal do filósofo. Neste sentido, a Filosofia é a ciência da referência de todo o conhecimento aos fins essenciais da razão humana (teleologia rationis humanae), e o filósofo não é um artista da razão, mas sim o legislador da razão humana. Neste significado, seria assaz vanglorioso chamar-se a si mesmo de filósofo e arrogar-se uma identidade com o arquétipo existente unicamente na idéia. (Kant, CRP, B866/7)
Um ponto tem passado desapercebido na leitura desse trecho da Crítica. Muitos leitores costumam deter-se no que Kant diz sobre a Filosofia “até aqui”, como ele escreve no início da citação. O quê ele escreveu até aqui? “Até aqui” refere-se às repetidas idéias sobre “ensinar filosofia”:
Até então não é possível aprender qualquer filosofia; pois onde esta se encontra, quem a possui e segundo quais características se pode reconhecê-la? Só é possível aprender a filosofar, ou seja, exercitar o talento da razão, fazendo-a seguir os seus princípios universais em certas tentativas filosóficas já existentes, mas sempre reservando à razão o direito de investigar aqueles princípios até mesmo em suas fontes, confirmando-os ou rejeitando-os.
Essa frase de Kant – em especial a que diz que “só é possível aprender a filosofar” - é muito usada nas discussões sobre ensino de Filosofia mas na maioria das vezes ela é isolada do contexto na qual ela é apresentada, e onde claramente indica um dos pólos da Filosofia. Até aqui, diz Kant, tratava-se de apenas um dos conceitos da Filosofia; mas há outro, ele insiste, o outro pólo da mesma; num sentido, a Filosofia é um sistema de conhecimentos procurado, esotérica, um domínio de conhecimentos e habilidades profissionais numa busca rigorosa e sem fim; noutro ela é uma visão condutora, concernida com o que interessa a todos os seres humanos, exotérica.
Comentando a passagem na qual Kant faz a distinção entre o conceito de escola (Schulbegriff) e o conceito de mundo (Weltbegriff), mas os caracteriza como dois conceitos complementares da Filosofia, James Conant escreve:
Isso mostra que, para Kant, a questão não está em delinear dois tipos diferentes de Filosofia, mas sim em discriminar dois pólos diferentes de um único campo de atividade – a implicação não é só que cada um desses conceitos reivindica o título de ‘Filosofia’, mas também que a empresa filosófica só pode alcançar o máximo rendimento quando vista sob a influência de cada um deles. (Conant, in Putnam, RRH)
Por vezes busca-se uma paz entre as diversas escolas e movimentos (“hermenêuticos”, “dialéticos”, “analíticos”, etc.) por meio do argumento que diz que cada professor deve honrar sua “opção filosófica”, sua “escolha categorial e axiológica”, que será o “padrão e o fundamento” de suas “críticas” (as expressões estão nos PCN). O que me parece que isso é uma projeção indevida de certos conflitos cujo palco é o grande mundo universitário e suas pequenas províncias de poder acadêmico no pobre espaço da escola média. Haveria, nesse perspectiva, um ensino médio de Filosofia de cunho ou hermenêutico ou dialético ou analítico ou ou ou. O argumento supõe que o licenciado em Filosofia sai de seu curso superior militando em uma escola ou movimento filosófico? Na Filosofia, parece rezar o argumento, não há nada antes dessas afiliações. Isso faz sentido? O que aconteceria se experimentássemos nos orientar pela idéia que a Filosofia é um mundo que tem escolas, tendências, movimentos, pólos, regiões, continentes, etc, mas é, em algum sentido, una, uma? No ensino com crianças e no ensino médio precisamos ter presente certos grandes traços daquilo que chamamos do “o mundo da Filosofia” de uma forma mais ampliada do que aquela com que estamos acostumados na academia. Essa noção da Filosofia como um mundo é importante pois nos permite explorar a ambigüidade do conceito de “pólo”: um campo de atividades e energias pode ter pólos, um mundo pode ter pólos, e não deixam de ser um. Costuma-se ouvir que devemos fazer escolha, ou isso ou aquilo: ou ensino de lógica, linguagem e argumentação, ou temas abertos de ética e política; ou Strawson ou Deleuze; ou Quine ou Levinas.
É possível imaginar o triste sorriso de Sócrates, Platão e Aristóteles, revirando-se em suas tumbas.