Uma concepção minimalista de "consciência crítica"
Uma posição muito comum entre os defensores da presença da Filosofia no currículo consiste na afirmação das boas conseqüências formadoras da disciplina; dizemos que a disciplina desapareceu das escolas brasileiras por pressão do regime militar, que desejava afastar das escolas uma disciplina formadora de consciência crítica. Essa visão sobre a função da disciplina ainda é muito difundida mas já não mais se sustenta, se com ela queremos dizer que “formar consciência crítica” é um apanágio da disciplina de Filosofia. Qualquer consulta aos documentos curriculares das demais áreas de conhecimentos escolares mostra que elas têm uma clara percepção da fatia de trabalho de cada uma na "formação crítica e cidadã", como diz a lei.
Como diria o Marquês de Sade, precisamos ainda fazer um esforço adicional se queremos vencer a inércia de um jargão; apenas falar em “formar consciência crítica” sem mostrar conteúdos, instrumentos e metodologias específicas soa vazio. Nos congressos sobre ensino de filosofia é nítida a sensação de impaciência com o que parece ser o refúgio fácil para a falta do que dizer. Assim, precisamos, entre outras coisas, revisar essa noção de consciência crítica para melhor compreender porque todas as demais disciplinas partilham conosco esta responsabilidade.
Como podemos caracterizar a natureza dos questionamentos filosóficos? Sabemos que a Filosofia não pode, sem controvérsias, ser vista como uma disciplina empírica. Por mais que possamos ter simpatia para com os programas de naturalização ou de redução da Filosofia, devemos admitir que eles surgem como provocações ao debate, já que, de uma ou de outra forma, ainda trabalhamos honrando o essencial da herança socrática: quer a Filosofia seja entendida como uma “investigação racional mediante conceitos” (como diz Kant, na Lógica), quer como uma atividade de questionamento das nossas convenções e imaturidades, ela ocupa um espaço de investigação que não se confunde com o saber positivo sobre as diversas e particulares dimensões da realidade. Apesar desse tipo de consenso, a caracterização em detalhes do espaço peculiar da Filosofia – e da aula de Filosofia no ensino médio - é uma discussão que parece ser interminável.
A caracterização da Filosofia como pensamento “crítico” tem hoje apenas um empobrecido valor de jargão na medida em essa virtude é reivindicada por todas as áreas de ensino. Já não é mais possível ao professor de Filosofia imaginar sua disciplina como a guardiã preferencial da consciência crítica dos estudantes; o professor de História e Artes e Educação Física e Física e Química e Geografia e Português e Biologia e todos os demais consideram-se formadores de consciência e cidadania e pedem ao professor de Filosofia que faça sua parte específica, por exemplo, ajudando o aluno a ter mais (apenas) consciência a respeito da estrutura da argumentação apresentada em suas escritas e leituras, quaisquer que sejam. Os sociólogos, físicos, químicos, biólogos, historiadores, geógrafos, os artistas não se vêem como atores secundários na “formação crítica e cidadã” pois entendem que saber mais e melhor sobre a realidade social, física, química, biológica, histórica, geográfica e artística tem tudo a ver com a calibragem de nossos juízos valorativos; para todos eles as relações entre as nossas crenças factuais e nossos juízos morais são bem mais complexas do que sonha certa filosofia.
Dito isto, como devemos entender a “criticidade”? A resposta-padrão que temos é que se trata de uma habilidade, de uma capacidade, de um exercício de distanciamento, de suspensão de juízo, de mensuração de conseqüências, de melhor exame; trata-se de uma retirada do comércio da vida comum, para submetê-la a um escrutínio circunstanciado. A descrição soa familiar, mas se olhamos para ela com algum distanciamento vemos que ela se aplica sem retoque ao trabalho dos cientistas, físicos, químicos, biólogos, historiadores, sociólogos, geógrafos, artistas, escritores. Isto é assim porque ter “espírito crítico” parece ser uma outra forma de ver uma característica interna e intrínseca de nosso aparato cognitivo, que pode ou não ser acionada, em graus e proporções diferenciadas.
Vou chamar isso de uma visão deflacionista da “consciência crítica”, que diz que ela é uma habilidade característica dos seres humanos. Ela é, de um lado, uma capacidade, uma virtude, fruto de aprendizado; de outro, todo ser humano a possui em grau mínimo, ao menos, pelo simples fato que todos nós somos essencialmente dependentes de informações para orientar as nossas decisões cotidianas. A tarefa de administrar informações exige uma espécie de mecanismo ou filtro de controle ou validação das informações que recebemos. Nesse processo de testagem de informações existem dois pontos extremos: de um lado, não é razoável acreditar em tudo; igualmente, não é razoável duvidar de tudo. Assim, ser crítico, é, em certo sentido, ser racional, e isto quer dizer, entrar na posse de uma habilidade conquistada às penas, duras ou macias. A razão é uma virtude a ser exercida e não uma entidade pronta.
Alguém poderia lembrar aqui o caso das sociedades tradicionais, que parecem criar mecanismos que dificultam o distanciamento e a discussão daquelas afirmações que dizem respeito à sua identidade de base, regras e normas sociais fundamentais. Nelas, as normas sociais são justificadas de forma vertical ou autoritária. Essa lembrança apenas seria relevante se estivéssemos convencidos, mediante argumentos empíricos, que existem nas sociedades contemporâneas bolsões de tradicionalismo que impedem formas mínimas de questionamento. Mesmo que isso fosse razoável, deve-se lembrar que mesmo as justificações autoritárias, na medida em que devem justificar as condutas moralmente boas, parecem deixar uma porta aberta para a dúvida e para a crítica, pois pode-se sempre (perguntar se as normas são boas porque Deus as promulgou ou se Deus as promulgou porque são boas. Trata-se do problema do Eutífron, como lembra Tugendhat (2002).
O que estou procurando caracterizar aqui é um argumento clássico que sustenta que há uma relação ao mesmo tempo essencial e trivial entre “conhecimento” e “criticidade”. Em certo sentido essa relação é trivial porque se trata apenas da caracterização de uma das conseqüências da diferença entre a operação de compreensão (no nível do significado e da linguagem) e a operação de conhecimento (no nível da referência e do mundo). A estrutura da mente humana é tal que dependemos da posse de conhecimentos (no sentido tradicional de crenças que são acompanhadas de justificações adequadas), e não apenas de crenças; isso supõe o funcionamento de capacidades, mecanismos cognitivos e procedimentos de verificação que colocamos em operação para que ocorra a passagem da crença para o conhecimento. A “criticidade”, na medida em que é compreendida como a capacidade de distanciamento, de suspensão de juízos, é um dos componentes da nossa estrutura noética. O fato de alguém se declarar “crítico” tem uma relação externa e acidental com a adesão a uma visão de mundo, por exemplo. Por outro lado, a Tabela Periódica dos Elementos ou o quadrado das oposições pode ser uma fonte de liberdade.
Como diria o Marquês de Sade, precisamos ainda fazer um esforço adicional se queremos vencer a inércia de um jargão; apenas falar em “formar consciência crítica” sem mostrar conteúdos, instrumentos e metodologias específicas soa vazio. Nos congressos sobre ensino de filosofia é nítida a sensação de impaciência com o que parece ser o refúgio fácil para a falta do que dizer. Assim, precisamos, entre outras coisas, revisar essa noção de consciência crítica para melhor compreender porque todas as demais disciplinas partilham conosco esta responsabilidade.
Como podemos caracterizar a natureza dos questionamentos filosóficos? Sabemos que a Filosofia não pode, sem controvérsias, ser vista como uma disciplina empírica. Por mais que possamos ter simpatia para com os programas de naturalização ou de redução da Filosofia, devemos admitir que eles surgem como provocações ao debate, já que, de uma ou de outra forma, ainda trabalhamos honrando o essencial da herança socrática: quer a Filosofia seja entendida como uma “investigação racional mediante conceitos” (como diz Kant, na Lógica), quer como uma atividade de questionamento das nossas convenções e imaturidades, ela ocupa um espaço de investigação que não se confunde com o saber positivo sobre as diversas e particulares dimensões da realidade. Apesar desse tipo de consenso, a caracterização em detalhes do espaço peculiar da Filosofia – e da aula de Filosofia no ensino médio - é uma discussão que parece ser interminável.
A caracterização da Filosofia como pensamento “crítico” tem hoje apenas um empobrecido valor de jargão na medida em essa virtude é reivindicada por todas as áreas de ensino. Já não é mais possível ao professor de Filosofia imaginar sua disciplina como a guardiã preferencial da consciência crítica dos estudantes; o professor de História e Artes e Educação Física e Física e Química e Geografia e Português e Biologia e todos os demais consideram-se formadores de consciência e cidadania e pedem ao professor de Filosofia que faça sua parte específica, por exemplo, ajudando o aluno a ter mais (apenas) consciência a respeito da estrutura da argumentação apresentada em suas escritas e leituras, quaisquer que sejam. Os sociólogos, físicos, químicos, biólogos, historiadores, geógrafos, os artistas não se vêem como atores secundários na “formação crítica e cidadã” pois entendem que saber mais e melhor sobre a realidade social, física, química, biológica, histórica, geográfica e artística tem tudo a ver com a calibragem de nossos juízos valorativos; para todos eles as relações entre as nossas crenças factuais e nossos juízos morais são bem mais complexas do que sonha certa filosofia.
Dito isto, como devemos entender a “criticidade”? A resposta-padrão que temos é que se trata de uma habilidade, de uma capacidade, de um exercício de distanciamento, de suspensão de juízo, de mensuração de conseqüências, de melhor exame; trata-se de uma retirada do comércio da vida comum, para submetê-la a um escrutínio circunstanciado. A descrição soa familiar, mas se olhamos para ela com algum distanciamento vemos que ela se aplica sem retoque ao trabalho dos cientistas, físicos, químicos, biólogos, historiadores, sociólogos, geógrafos, artistas, escritores. Isto é assim porque ter “espírito crítico” parece ser uma outra forma de ver uma característica interna e intrínseca de nosso aparato cognitivo, que pode ou não ser acionada, em graus e proporções diferenciadas.
Vou chamar isso de uma visão deflacionista da “consciência crítica”, que diz que ela é uma habilidade característica dos seres humanos. Ela é, de um lado, uma capacidade, uma virtude, fruto de aprendizado; de outro, todo ser humano a possui em grau mínimo, ao menos, pelo simples fato que todos nós somos essencialmente dependentes de informações para orientar as nossas decisões cotidianas. A tarefa de administrar informações exige uma espécie de mecanismo ou filtro de controle ou validação das informações que recebemos. Nesse processo de testagem de informações existem dois pontos extremos: de um lado, não é razoável acreditar em tudo; igualmente, não é razoável duvidar de tudo. Assim, ser crítico, é, em certo sentido, ser racional, e isto quer dizer, entrar na posse de uma habilidade conquistada às penas, duras ou macias. A razão é uma virtude a ser exercida e não uma entidade pronta.
Alguém poderia lembrar aqui o caso das sociedades tradicionais, que parecem criar mecanismos que dificultam o distanciamento e a discussão daquelas afirmações que dizem respeito à sua identidade de base, regras e normas sociais fundamentais. Nelas, as normas sociais são justificadas de forma vertical ou autoritária. Essa lembrança apenas seria relevante se estivéssemos convencidos, mediante argumentos empíricos, que existem nas sociedades contemporâneas bolsões de tradicionalismo que impedem formas mínimas de questionamento. Mesmo que isso fosse razoável, deve-se lembrar que mesmo as justificações autoritárias, na medida em que devem justificar as condutas moralmente boas, parecem deixar uma porta aberta para a dúvida e para a crítica, pois pode-se sempre (perguntar se as normas são boas porque Deus as promulgou ou se Deus as promulgou porque são boas. Trata-se do problema do Eutífron, como lembra Tugendhat (2002).
O que estou procurando caracterizar aqui é um argumento clássico que sustenta que há uma relação ao mesmo tempo essencial e trivial entre “conhecimento” e “criticidade”. Em certo sentido essa relação é trivial porque se trata apenas da caracterização de uma das conseqüências da diferença entre a operação de compreensão (no nível do significado e da linguagem) e a operação de conhecimento (no nível da referência e do mundo). A estrutura da mente humana é tal que dependemos da posse de conhecimentos (no sentido tradicional de crenças que são acompanhadas de justificações adequadas), e não apenas de crenças; isso supõe o funcionamento de capacidades, mecanismos cognitivos e procedimentos de verificação que colocamos em operação para que ocorra a passagem da crença para o conhecimento. A “criticidade”, na medida em que é compreendida como a capacidade de distanciamento, de suspensão de juízos, é um dos componentes da nossa estrutura noética. O fato de alguém se declarar “crítico” tem uma relação externa e acidental com a adesão a uma visão de mundo, por exemplo. Por outro lado, a Tabela Periódica dos Elementos ou o quadrado das oposições pode ser uma fonte de liberdade.