Monday, June 26, 2006

24. Cavell: pensar cuidadosamente sobre coisas que todos pensam distraidamente

"Eu compreendo (a filosofia) como uma vontade de pensar, não sobre coisas diferentes daquelas sobre as quais as pessoas comuns pensam, mas ao contrário, de aprender a pensar de forma não distraída sobre coisas que os homens comuns não podem deixar de pensar, ou, enfim, sobre coisas que não deixam de ocorrer a eles, algumas vezes nas fantasias, algumas vezes como que num relance por entre uma paisagem; são coisas tais como, por exemplo, se podemos conhecer o mundo como ele é em si mesmo, ou se outras pessoas realmente conhecem a natureza das nossas experiências, ou se o bem e o mal são relativos, ou se poderíamos agora estar sonhando que estamos acordados, ou se as modernas tiranias e armas e espaços e velocidades e artes estão em continuidade com o passado da raça humana ou são descontínuas, e assim se o aprendizado da raça humana não é irrelevante diante dos problemas que criou para si mesmo. Tais pensamentos são exemplares daquele desejo característico da humanidade de fazer para si mesmo perguntas que não pode responder satisfatoriamente. Os cínicos acerca da filosofia, e talvez acerca da humanidade, opinarão que perguntas sem respostas são vazias; os dogmáticos pretenderão ter respondido a tais perguntas; os filósofos que admiro preferirão sugerir o pensamento que ao mesmo tempo que pode não haver respostas satisfatórias para tais questões em certas formas, existem, por assim dizer, direções para respostas, maneiras de pensar, que valem o tempo de nossa vida aplicado em descobri-las."
(Stanley Cavell, em Themes out of School)

23. Kierkegaard e a Filosofia

"Com efeito, os conceitos, assim como os indivíduos, têm sua história e, tal como eles, não conseguem resistir ao poder do tempo. E no entanto, por isso e apesar disso, guardam mesmo assim uma espécie de saudade da terra onde nasceram. Assim como a filosofia por um lado não pode ser indiferente a essa história posterior do conceito, assim também ela não pode ater-se somente àquela primeira história, por mais rica e interessante que seja. A filosofia exige sempre alguma coisa a mais, exige o eterno, o verdadeiro, frente ao qual mesmo a existência mais sólida é, enquanto tal, o instante afortunado. Ela se relaciona com a história como o confessor com o penitente, e deve, como um confessor, ter um ouvido afinado, pronto para seguir as pistas dos segredos daquele que se confessa; mas ela também está em condições de, após ter escutado toda a série de confissões, fazê-las aparecer diante do que confessa como uma coisa diferente. Pois assim como o indivíduo que se confessa pode muito bem ter condições não só de recitar analiticamente os feitos de sua vida mas também de relatá-los de maneira amena e agradável, e no entanto não consegue ele mesmo ver sua vida como um todo, assim também a história pode muito bem proclamar pateticamente, em alta voz, a riqueza da vida do gênero humano, mas tem de deixar à mais velha (à filosofia) a tarefa de explicá-la, e pode então desfrutar da alegre surpresa: no primeiro instante quase não quer reconhecer a versão elaborada pela filosofia, mas vai se familiarizando pouco a pouco com esta concepção filosófica, até chegar finalmente a encará-la como a verdade autêntica, e o outro lado como mera aparência."
(Kierkegaard. O Conceito de Ironia. Petrópolis, Vozes, 1991. Tradução de Álvaro Valls)

22. A definição de Wilfrid Sellars

"O objetivo da filosofia, formulado abstratamente, é compreender como as coisas, no mais amplo sentido do termo, se vinculam (hang together) no mais amplo sentido possível da expressão. Sob “coisas no mais amplo sentido possível” eu incluo itens tão radicalmente diferentes que não apenas “repolhos e reis”, mas números e deveres, possibilidades e estalar de dedos, experiência estética e morte. Obter sucesso na filosofia seria, para usar um dito contemporâneo, saber a quantas a gente anda (to know one’s way around) com respeito a todas essas coisas, não naquela forma não reflexiva na qual a centopéia da história sabia o que fazer antes de encarar a pergunta “como eu caminho?”, mas na forma refletida que significa que nenhuma fortaleza intelectual está livre de ataque."
(Wilfrid Sellars: “Philosophy and the Scientific Image of man”. In: Science, Perception and Reality. Ridgeview Publishing Company. Atascadero, California, 1991)

21. Edmund Husserl e a ciência das trivialidades

“Justamente o filósofo deve saber que por trás do "evidente e notório" se ocultam os problemas mais difíceis; tanto que, de uma forma paradoxal, mas com um sentido profundo, a filosofia poderia ser designada como a ciência das trivialidades.” (p. 469 da tradução de Morente e Gaos, Investigaciones Logicas)

20. Wittgenstein, nas Investigações Filosóficas

§ 90. É como se devêssemos desvendar os fenômenos: nossa investigação, no entanto, dirige-se não aos fenômenos, mas, como poderíamos dizer, às ‘possibilidades’ dos fenômenos. Refletimos sobre o modo das asserções que fazemos sobre os fenômenos. Por isso Agostinho reflete também sobre as diferentes asserções que se fazem sobre a duração dos acontecimentos, sobre seu passado, presente ou futuro. (Naturalmente, estas não são asserções filosóficas sobre o tempo, passado, presente e futuro.)
Nossa consideração é, por isso, gramatical. E esta consideração traz luz para o nosso problema, afastando os mal-entendidos. Mal-entendidos que concernem ao uso das palavras; provocados, entre outras coisas, por certas analogias entre as formas de expressão em diferentes domínios da nossa linguagem. Muitos deles são afastados ao se substituir uma forma de expressão por outra; isto se pode chamar de “análise” de nossas formas de expressão, pois esse processo assemelha-se muitas vezes a uma decomposição.
§ 119. Os resultados da filosofia consistem na descoberta de um simples absurdo qualquer e nas contusões que o entendimento recebeu ao correr de encontro às fronteiras da linguagem. Elas, as contusões, nos permitem reconhecer o valor dessa descoberta.
§ 123: A philosophical problem has the form: "I don't know my way about". (Um problema filosófico tem a forma: "Eu não sei a quantas ando".)
Wittgenstein trata da natureza da filosofia nas "Investigacões" nas passagens próximas a 123. Em 124 ele escreve:
§ 124. Philosophy may in no way interfere with the actual use of language; it can in the end only describe it. For it cannot give it any foundation either. It leaves everything as it is.
It also leaves mathematics as it is, and no mathematical discovery can advance it. A "leading problem of mathematical logic" is for us a problem of mathematics like any other. Philosophy simply puts everything before us, and neither explain nor deduces anything. - Since everything lies open to view there is nothing to explain. For what is hidden, for example, is of no interest to us. One might also give the name "philosophy" to what is possible before all new discoveries and inventions.
§ 127. The work of the philosopher consists in assembling reminders for a particular purpose.

19. Wittgenstein, no Tractatus

Tractatus Logico-Philosophicus: “A filosofia não é uma das ciências naturais. (A palavra “filosofia” deve significar algo que esteja acima ou abaixo, mas não ao lado, das ciências naturais.) 4.111.
“O fim da filosofia é o esclarecimento lógico dos pensamentos. A filosofia não é uma teoria, mas uma atividade. Uma obra filosófica consiste essencialmente em elucidações. O resultado da filosofia não são “proposições filosóficas”, mas é tornar proposições claras. Cumpre à filosofia tornar claros e delimitar precisamente os pensamentos, antes como que turvos e indistintos.” 4.112

18. Immanuel Kant e as dimensões da Filosofia

Um dos argumentos que estamos discutindo nesta disciplina gira em torno da idéia que a Filosofia é uma área da cultura que possui mais de uma dimensão. O ponto de partida para a caracterização dessas dimensões é uma distinção proposta por Immanuel Kan. Ele coloca, de um lado, o “conceito de mundo” ou o conceito “cosmopolita” de filosofia, que visa visa destacar a utilidade da filosofia, na medida em que ela pode ser vista como um tipo de conhecimento que se ocupa com os fins últimos da razão humana. A filosofia, nesse sentido cosmopolita, trata daquilo que interessa necessariamente a todos os seres humanos. O ‘conceito de mundo’ representa o lado motivacional e temático da filosofia. São questões como a do “sentido da vida”, da felicidade, da moralidade, etc. Kant apresenta essa caracterização, entre outros livros, na Crítica da Razão Pura: “(...) a Filosofia é a ciência da referência de todo o conhecimento aos fins essenciais da razão humana”. (B867) O domínio da Filosofia, neste sentido cosmopolita deixa-se reduzir às seguintes questões clássicas: o que posso saber? O que devo fazer? O que me é lícito esperar? O que é o homem”. No sentido cosmopolita, a filosofia é uma sabedoria.
Por outro lado, o mesmo autor destaca o chamado “conceito de escola” (ou conceito “escolástico" de filosofia). Este significado visa a filosofia como uma habilidade. A filosofia é o “sistema (...) dos conhecimentos racionais a partir de conceitos.” (CRP, B741, B760) O “conceito de escola” representa o lado sistemático e metodológico da filosofia. O tema (ou a ocupação) da filosofia, no sentido do “conceito de escola”, são “os conceitos que pertencem ao nosso mundo da vida”: verdade, consciência, autoconsciência, responsabilidade, querer, agir, etc A filosofia opera por meio de elucidações (esclarecimentos) conceituais. É, portanto, uma atividade de esclarecimento de conceitos.
Esta distinção de aspectos da filosofia é hoje largamente levada em consideração. Considero-a útil para fixar o âmbito de contribuições que a filosofia pode fazer em atividades como a de formação de professores, mas talvez possamos pensar em mais facetas da Filosofia, relevantes para o processo didático.
Nessa postagem, quero relembrar duas passagens na CRP sobre o sentido da Filosofia:
“... a Filosofia consiste simplesmente num conhecimento racional segundo conceitos”.
E ainda:
“Trata-se de pretensões arrogantes que jamais podem se concretizar, e que antes fazem com que a Filosofia retroceda em seu propósito de revelar as ilusões de uma razão desconhecedora de seus limites e de reconduzir mediante uma clarificação suficiente de nossos conceitos, a presunção da especulação a um modesto, porém acurado, autoconhecimento.” CRP, B, 765

17. Hume e o delírio filosófico

Uma das tantas passagens famosas do “Tratado da Natureza Humana” de Hume é aquela onde ele descreve a “melancolia e o delírio filosófico”. Trata-se de um texto muito estudado. Recomendo, sobre esse tema, o livro de Barry Stroud, Hume; o artigo de M. F. Burnyeat. Can the Sceptic live his scepticism? e ainda o livro de Putnan. Renewing Philosophy, p. 135. Transcrevi alguns trechos que antecedem a passagem para que ela tenha um melhor contexto. O bom mesmo é ler todo o capítulo no “Tratado”.
“Em um primeiro momento sinto-me assustado e confuso com a solidão desesperadora em que me encontro dentro de minha filosofia; imagino-me como um monstro estranho e rude que, incapaz de misturar-se com os demais e unir-se à sociedade, foi expulso de todo o contato com os homens e deixado no absoluto abandono e desconsolo. De boa vontade, aproximar-me-ia da multidão em busca de abrigo e calor, mas não consigo convencer a mim mesmo a me juntar a ela, tendo tal deformidade. Clamo a outros para que se juntem a mim, para formarmos um grupo à parte; mas ninguém me dá ouvidos. Todos mantém distância, temendo a tempestade que se abate sobre mim de todos os lados. (...)
Já assinalei, com efeito, que quando o entendimento atua por si mesmo e de acordo com seus princípios mais gerais, se autodestrói por completo e não deixa nem o menor grau de evidência em nenhuma proposição, seja da filosofia ou da vida ordinária. (...)
Mas que foi que eu disse? Que as reflexões muito sutis e metafísicas exercem pouca ou nenhuma influencia sobre nós? Dificilmente poderia deixar de me retratar e de condenar essa minha opinião com base em meu sentimento e experiência presente. A visão intensa dessas variadas contradições e imperfeições da razão humana me afetou de tal maneira, e inflamou minha mente a tal ponto, que estou prestes a rejeitar toda crença e raciocínio, e não consigo considerar uma só opinião como mais provável e verosssimil que as outras. Onde estou, o que sou? A que causas devo minha existência e a que condição retornarei? Que favores buscarei e a que furores devo recear? Que seres me rodeiam, sobre qual tenho influência ou qual tem sobre mim? Todas essas perguntas me confundem, e começo a ver-me na condição mais deplorável que se possa imaginar, privado absolutamente do uso de meus membros e faculdades.
Felizmente ocorre que, ainda que a razão seja incapaz de dissipar essas nuvens, a natureza mesma é suficiente para este propósito, e me cura dessa melancolia e desse delírio filosófico, ou bem relaxando minha concentração mental ou bem por meio de alguma distração: uma impressão vivaz de meus sentidos, por exemplo, me faz esquecer todas essas quimeras. Saio para jantar, jogo uma partida de gamão com meus amigos, bato um papo e sou feliz com meus amigos; e quando volto para essas especulações depois de três ou quatro horas de distração, me parecem tão frias, forçadas, ridículas que não me sinto com disposição para me aprofundar mais nelas."
(Hume. Tratado da Natureza Humana, Livro I, Parte IV, Seção VII)

16. Locke e os empulhadores

John Locke, em seu Ensaio sobre o Entendimento Humano, tratou do tema da pseudo-profundidade que muitas vezes passa por grande filosofia:
“(...) o mundo estaria muito mais adiantado se o esforço de homens engenhosos e perspicazes não estivesse tão embaraçado pela erudição e pelo uso frívolo de termos desconhecidos, afetados e ininteligíveis, introduzidos nas ciências, e fazendo disso uma arte a tal ponto de a filosofia, que nada mais é do que o verdadeiro conhecimento das coisas, tornar-se imprópria ou incapaz de ser apreciada pela sociedade mais refinada e nas conversas eruditas. Formas vagas e sem significado de falar, e abuso da linguagem, têm por muito tempo passado por mistérios da ciência; palavras difíceis e mal empregadas, com pouco ou nenhum sentido, tem, por prescrição, tal direito que são confundidas com o pensamento profundo e o cume da especulação, sendo difícil persuadir não só os que falam como os que os ouvem que são apenas abrigos da ignorância e obstáculos ao verdadeiro conhecimento.”

15. Descartes e a metáfora da árvore

Descartes é um autor que podemos somar àqueles que desenvolveram o lado sistemático da Filosofia. Talvez se deva dizer dele um pouco mais; além de sistemático, Descartes era um fundacionalista. Ele gostava de metáforas de árvores, edifícios, reformas, fundações (veja a segunda parte do Discurso do Método, por exemplo). O trecho a seguir está nos “Princípios de Filosofia”.
“Ora, viver sem filosofar equivale, verdadeiramente, a ter os olhos fechados, sem nunca procurar abri-los e o prazer de ver todas as coisas que a nossa vista alcança não se compara à satisfação que confere o conhecimento do que se encontra pela filosofia; e enfim, que este estudo é mais necessário para regrar os costumes, e conduzir-nos na vida, do que o uso dos olhos para nos guiar os passos. Os brutos animais que apenas possuem o corpo para conservar, ocupam-se, continuamente, com procurar alimentá-lo; mas os homens, cuja parte principal é o espírito, deveriam primacialmente empregar o tempo na pesquisa da sabedoria, o seu verdadeiro alimento. (...)
Assim toda a filosofia é como uma árvore, cujas raízes são formadas pela metafísica, o tronco pela física e os ramos que saem deste tronco, constituem todas as outras ciências que, ao cabo se reduzem a três principais: a medicina, a mecânica e a moral (...). (Princípios de Filosofia.)

14. Agostinho. As Confissões.

Selecionei duas passagens de Santo Agostinho. Nelas nos interessarão diversos aspectos, entre eles o que mais adiante chamaremos de “profusão grafomórfica” da Filosofia. Aqui vai também a famosa passagem sobre a análise do conceito de “tempo”.
A Sedução do Perfume. Não me inquieto demasiado com as seduções do perfume. Quando está afastado, não o procuro. Quando o tenho presente, não me esquivo, mas também estou preparado para dele me abster. Ao menos assim me parece. Talvez me engane.
A própria razão, que em mim existe, de tal maneira se esconde nestas trevas deploráveis que me rodeiam que, quando meu espírito se interroga a si mesmo acerca das próprias forças, julga que não deve acreditar facilmente em si, por desconhecer, na maior parte dos casos, o que nele se passa, exceto quando a maior experiência claramente lhe manifesta.
Ninguém se deve ter por seguro nesta vida que toda ela se chama tentação. Quem é que, sendo pior, não se pode tornar melhor, e de melhor descer a pior? Só há uma única esperança, uma única promessa inabalável: a Vossa misericórdia.
O que é o tempo?
...Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem poderá apreendê-lo, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizer quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicá-lo a quem me fizer a pergunta, já não sei.

13. A Filosofia vista pela Biblia

Paulo, Colossenses, 2,8:
“Vigiai para que ninguém vos apanhe no laço da filosofia, esse vão embuste fundado na tradição dos homens, nos elementos do mundo, e não mais em Cristo” .

12. Sêneca: Um trecho da Consolação à Márcia

Nem só de espírito de sistema é feita a Filosofia. Um dos objetivos da disciplina é procurar caracterizar outras dimensões da Filosofia. Para caminhar nessa direção começamos com uma leitura de Michel Foucault, do livro “A Hermenêutica do Sujeito”. Entre os autores que consideramos para indicar essas outras dimensões, estavam nomes como Epicuro (Sobre o Ouvir) e Sêneca. Transcrevo abaixo um trecho de um texto de Sêneca. É a minha passagem favorita da “Consolação a Márcia”. Márcia era uma senhora importante na sociedade romana que havia perdido um filho, Metílio, por volta do ano 40, quando governava o famoso Calígula. O texto é simplesmente brilhante.
XI. 1. E que esquecimento é este, afinal, de tua própria condição e da de todos? Nasceste mortal e geraste mortais. Sendo tu mesma um corpo perecível e frágil e sujeita a doenças, esperaste ter gerado de uma matéria tão fraca alguma coisa sólida e eterna? Teu filho morreu: isto significa que ele chegou àquele fim para o qual caminham aquelas coisas que julgas mais felizes que teu filho. Para lá se dirige com passo desigual toda essa multidão que discute no fórum, que vai ao teatro e ora nos templos: e uma única cinza igualará tanto o que amas quanto o que desprezas. Isto é o que declaram aquelas palavras atribuídas ao oráculo Pítico: Conhece-te a ti mesmo. O que é o homem? Um vaso que pode quebrar-se ao menor abalo, ao menor movimento. Não é necessária uma grande tempestade para que se destrua; bata onde bater, se dissolverá. O que é o homem? Um corpo débil e frágil, desnudo, indefeso por sua própria natureza, que tem necessidade do auxílio alheio, exposto a todos os danos do destino; um corpo que quando exerceu bem os seus músculos, é pasto de qualquer fera, é vítima de qualquer uma; composto de matéria inconsistente e mole e brilhante somente nas feições exteriores; incapaz de suportar o frio, o calor, a fadiga e, por outro lado, destinado à desagregação pela inércia da ociosidade; um corpo preocupado com seus alimentos, por cuja carência ora se enfraquece, por cujo excesso ora se rompe; um corpo angustiado e inquieto por sua conservação, provido de uma respiração precária e pouco firme, a qual um forte ruído repentino perturba; um corpo que é fonte doentia e inútil, de contínuo perigo para si mesmo. 4. Admiramo-nos da morte neste corpo, a qual não precisa senão de um suspiro? Acaso é necessário muito esforço para que venha sucumbir? Um odor, um sabor, um cansaço, uma vigília, um humor, um alimento e aquelas coisas sem as quais não pode viver, lhe são mortais; para onde quer que se mova, tem imediatamente consciência de sua fraqueza; incapaz de suportar qualquer clima, torna-se doente pela troca das águas, pelo sopro de ar não familiar e por incidentes e danos de mínima importância; um ser precário, doentio, tendo começado a vida pelo choro. Não obstante, quantos tumultos provoca esse tão desprezível animal, a quão altos pensamentos aspira, esquecido de sua condição. 5. Revolve no espírito coisas imortais, coisas eternas e faz planos para os seus netos e bisnetos, enquanto ele planeja projetos duradouros, a morte o pressiona; e isto que se chama velhice é um período de pouquíssimos anos.
( Cartas Consolatórias. Tradução de Cleonice Furtado de Mendonça van Raij, Pontes Editora, Campinas, 1992).

11. Aristóteles: Metafísica, 1003 a 20

Aristóteles pode ser nosso autor de referencia para o que chamaremos, doravante, de “dimensão sistemática” da Filosofia. Essa dimensão corresponde, grosso modo, ao que chamamos, com Kant, de “conceito de escola”. Podemos dizer que esses autores são patronos de nossos esforços para desenvolver o lado científico, analítico, rigoroso, da Filosofia. O texto de Aristóteles que examinaremos, mais adiante, para pensar o lugar da Filosofia no currículo escolar, é esta passagem da “Metafísica”.
“Há uma ciência que investiga o ente enquanto ente e os atributos que lhe são próprios em virtude de sua natureza. Ora, esta ciência é diversa de todas as chamadas ciências particulares, pois nenhuma delas trata universalmente do ente enquanto ente. Dividem-no, tomam uma parte e dessa estudam os atributos: é o que fazem, por exemplo, as ciências matemáticas. Mas, como estamos procurando os primeiros princípios e as causas supremas, evidentemente deve haver algo a que eles pertençam como atributos essenciais. Se, pois, andavam em busca desses mesmos princípios aqueles filósofos que pesquisaram os elementos das coisas existentes, é necessário que esses sejam elementos essenciais e não acidentais do ser. Portanto, é do ente enquanto ente que também nós teremos de descobrir as primeiras causas.”

10. Filosofia e "filosofia de vida"

Um dos pontos de partida da aula de Filosofia no nível médio é o universo de referência disponível pelo aluno na vida cotidiana, pois a palavra ‘filosofia’ é uma expressão empregada na linguagem corrente. Indico alguns exemplos, retirados de um arquivo que recolhi faz alguns anos, do jornal A Razão, de nossa cidade, no dia 07/03/98. Essa era a manchete: “A Razão adquire dois parceiros”. O texto fala da aquisição de dois jornais, um em Uruguaiana e outro em Quaraí, por parte de A Razão, e diz assim: “Zaira de Grande ressaltou ainda a filosofia de trabalho de A Razão, sempre em defesa dos interesses de Santa Maria”. Um outro exemplo vem do Correio do Povo, do mesmo dia. Trata-se de uma notícia sobre o lançamento de um novo automóvel da Fiat, com o seguinte texto: “Os Fiat Marea e Marea Weekend foram projetados com a filosofia de oferecerem comodidade tanto em trajetos urbanos como nos mais longos (...).” Um outro exemplo, desta vez da Folha de S. Paulo do dia 13 de fevereiro de 1998. Trata-se de uma matéria assinada por Nina Horta, sobre livros de gastronomia. Ela escreve o seguinte: “A filha de Irma Rombauer (Marion) foi sempre uma sombra da mãe poderosa. Não escrevia bem, teve outro tipo de educação, foi para Vassar, interessou-se por botânica. Sua filosofia era outra. Onde a mãe era descuidada e “deixa-prá-lá”, ela era conscienciosa, prática, culta, mas herdara da mãe a capacidade de congregar à sua volta pessoas que também achavam que cozinhar era prazeiroso.” Veja que nesses casos podemos trocar a palavra “filosofia” por outras como “característica”, “estilo”, “atitude”, sem prejuízo quanto à boa compreensão do texto. Como observou alguém, parece que nesses casos o autor do texto busca um “complemento solene”. Afinal, não parece bonito a gente ter uma “filosofia de vida”? As relações entre aquilo que alguns chamam de filosofia “acadêmica” com esses usos do cotidiano são, no entanto, muito complexas. Vamos deixá-las para outra ocasião. Fique esse texto como um exemplo para o debate que fazemos nas aulas sobre os usos populares do termo “Filosofia”.

Wednesday, June 07, 2006

9. Deleuze e a Filosofia

Gilles Deleuze, no livro "A Lógica do Sentido", dedica um capítulo às “três imagens do filósofo”, abordando três metáforas: Platão e as alturas, os pré-socráticos e a vida nas cavernas, e, com Nietzsche, nem profundidade, nem altura, uma nova geografia da superfície. Vai aqui o texto:
“A imagem do filósofo, tanto popular como científica, parece ter sido fixada pelo platonismo: um ser das ascenções que sai da caverna eleva-se e se purifica na medida em que mais se eleva. Neste “psiquismo ascencional”, a moral e a filosofia, o ideal ascético e a idéia do pensamento estabeleceram laços muito estreitos. Deles dependem a imagem popular do filósofo nas nuvens, mas também a imagem científica segundo a qual o céu do filósofo é um céu inteligível que nos distrai menos da terra do que compreende sua lei. Mas nos dois casos tudo se passa em altitude (ainda que fosse a altura da pessoa no céu da lei moral). Quando perguntamos “que é orientar-se no pensamento?”, aparece que o pensamento pressupõe ele próprio eixos e orientações segundo as quais se desenvolve, que tem uma geografia antes de ter uma história, que traça dimensões antes de construir sistemas. A altura é o Oriente propriamente platônico. A operação do filósofo é então determinada como ascenção, como conversão, isto é, como o movimento de se voltar para o princípio do alto do qual ele procede e de se determinar, de se preencher e de se conhecer graças a uma tal movimentação. Não vamos comparar os filósofos e as doenças, mas há doenças propriamente filosóficas. (...)
(...) O filósofo pré-socrático não sai da caverna, ele estima, ao contrário, que não estamos bastante engajados nela, suficientemente engolidos. O que ele recusa em Teseu é o fio: “Que nos importa vosso caminho que sobe, vosso fio que leva fora, que leva à felicidade e à virtude... Quereis nos salvar com a ajuda deste fio? E nós, nós vos pedimos encarecidamente: enforcai-vos neste fio!” Os pré-socráticos instalaram o pensamento nas cavernas, a vida nas profundidade. Eles sondaram a água e o fogo. Eles fizeram filosofia a golpes de martelo, como Empédocles quebrando as estátuas, o martelo do geólogo, do espeleólogo. (...)
(...) No entanto, conforme ao método mesmo, temos a impressão de que se levanta uma terceira imagem de filósofos. E que é a eles que a palavra de Nietzsche se aplica particularmente: de tanto serem superficiais, como esses gregos eram profundos! Esses terceiros gregos não são mesmo mais completamente gregos. A salvação, eles não a esperam mais da profundidade da terra ou da autoctonia, muito menos do céu e da Idéia, eles a esperam lateralmente do acontecimento, do Leste - onde, como diz Carroll, se levantam todas as coisas boas. Com os Megáricos, os Cínicos e os Estóicos começam um novo filósofo e um novo tipo de anedotas.
(...) É uma reorientação de todo o pensamento e do que significa pensar: não há mais nem profundidade nem altura. (...) Não mais Dionísio no fundo, ou Apolo lá em cima, mas o Hércules das superfícies, na sua dupla luta contra a profundidade e a altura: todo o pensamento reorientado, nova geografia. (...)
O filósofo não é mais o ser das cavernas, nem a alma ou o pássaro de Platão, mas o animal chato das superfícies, o carrapato, o piolho. O símbolo filosófico não é mais a águia de Platão, nem a sandália de chumbo de Empédocles, mas o manto duplo de Antístenes e de Diógenes. O bastão e o manto, como Hércules com seu porrete e sua pele de leão”

8. A importância das metáforas

A importância das metáforas nas nossas vidas é um dos assuntos mais fascinantes. Aqui indico apenas uma passagem de alguém que escreveu coisas boas sobre esse tema, a filósofa e novelista Iris Murdoch. Veja esse trecho de abertura de "A soberania do bom sobre outros conceitos".

"O desenvolvimento da consciência nos seres humanos está inseparavelmente ligado ao uso da metáfora. Metáforas não são meramente decorações periféricas ou mesmo modelos úteis, elas são formas fundamentais da consciência que temos sobre nossa condição: metáforas de espaço, metáforas de movimentos, metáforas de visão. A filosofia, de modo geral, e a filosofia moral em particular, frequentemente, no passado, ocupou-se com aquilo que ela considerou ser nossas imagens mais importantes, esclarecendo algumas existentes e desenvolvendo novas. Os argumentos filosóficos que consistem em tais jogos de imagem, quero dizer, os grandes sistemas metafísicos, são usualmente inconclusivos, e isto é visto por muitos pensadores contemporâneos como desprovido de valor. O status e o mérito deste tipo de argumenta levanta, naturalmente, muitos problemas. No entanto, me parece impossível discutir certos tipos de conceitos sem recorrer à metáforas, já que os conceitos são eles mesmos profundamente metafóricos e não podem ser analisados em componentes não-metafóricos sem uma perda de substância. (...)

O texto original está disponível da Biblioteca Central da UFSM

7. A Filosofia como obstetricia

Outro texto formador - eu diria, outra das grandes metáforas formadoras - encontra-se no Teeteto, no qual Sócrates compara sua arte e atividade com a das parteiras.

“A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras, com a diferença de não partejar mulher, porém homens, e de acompanhar as almas, não os corpos, em seu trabalho de parto. Porém a grande superioridade da minha arte consiste na faculdade de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na iminência de conceber é alguma quimera e falsidade ou fruto legítimo e verdadeiro. Neste particular, sou igualzinho às parteiras: estéril em matéria de sabedoria, tendo grande fundo de verdade a censura que muitos me assacam, de só interrogar os outros, sem nunca apresentar opinião pessoal sobre nenhum assunto, por carecer, justamente, de sabedoria. E a razão é a seguinte: a divindade me incita a partejar os outros, porém me impede de conceber. Por isso mesmo, não sou sábio, não havendo um só pensamento que eu possa apresentar como tendo sido invenção de minha alma e por ela dado à luz. Porém os que tratam comigo, suposto que alguns, no começo pareçam de todo ignorantes, com a continuação de nossa convivência, quantos a divindade favorece progridem admiravelmente, tanto no seu próprio julgamento como no de estranhos. O que é fora de dúvida é que nunca aprenderam nada comigo; neles mesmos é que descobrem as coisas belas que põem no mundo, servindo, nisso tudo, eu e a divindade como parteira. (...) Neste ponto, os que convivem comigo se parecem com as parturientes: sofrem dores lancinantes e andam dia e noite desorientados, num trabalho muito mais penoso do que o delas. Essas dores é que minha arte sabe despertar ou acalmar. É o que se dá com todos. Todavia, Teeteto, os que não me parecem fecundos, quando eu chego à conclusão de que não necessitam de mim, com a maior boa-vontade assumo o papel de casamenteiro e, graças a Deus, sempre os tenho aproximado de quem lhes possa ser de mais utilidade. Muitos desses já encaminhei para Pródico, e outros mais para varões sábios e inspirados. Se te expus tudo isso, meu caro Teeteto, com tantas minúcias, foi por suspeitar que algo em tua alma está no ponto de vir à luz, como tu mesmo desconfias. Entrega-te, pois, a mim, como ao filho de uma parteira que também é parteiro, e quando eu te formular alguma questão, procura responder a ela do melhor modo possível. E se no exame de alguma coisa que disseres, depois de eu verificar que não se trata de um produto legítimo mas de algum fantasma sem consistência, que logo arrancarei e jogarei fora, não te aborreças como o fazem as mulheres com seu primeiro filho. Alguns, meu caro, a tal extremo se zangaram comigo, que chegaram a morder-me por os haver livrado de um que outro pensamento extravagante. Não compreendiam que eu só fazia aquilo por bondade, Estão longe de admitir que de jeito nenhum os deuses podem querer mal aos homens e que eu, do meu lado, nada faço por malquerença, pois não me é permitido em absoluto pactuar com a mentira nem ocultar a verdade.”
(TEETETO, de Platão)

6. O mito do nascimento de Eros

Na formação da identidade da Filosofia certos relatos ocupam um lugar privilegiado. A passagem abaixo, que se encontra no Banquete, de Platão, é uma delas.

"Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se encontrava também o filho de Prudência, Poros, o esperto. Enquanto se banqueteavam, aproximou-se Penia, a Penúria, para mendigar as sobras da festa, e sentou-se à porta. Embriagado pelo néctar, pois o vinho ainda não existia, Poros se encaminhou para os jardins de Zeus e lá adormeceu, dominado pela embriaguez. Foi então que Penia, em sua miséria, desejou ter um filho de Poros. Deitou-se a seu lado e concebeu a Eros, o amor. Por esse motivo é que Eros tornou-se mais tarde companheiro e servidor de Afrodite, pois foi concebido no dia em que esta nasceu. Além disso, Eros, devido à sua natureza, ama o que é belo e, como sabemos, Afrodite é bela. E por ser filho de Poros e Penia, Eros tem o seguinte fado: é pobre, e muito longe está de ser delicado e belo, como todos vulgarmente pensam. Eros, na realidade, é rude, é sujo, anda descalço, não tem lar, dorme no chão duro, junto aos umbrais das portas, ou nas ruas, sem leito nem conforto. Segue nisso a natureza da mãe que vive na miséria.
Por influência da natureza que recebeu do pai, Eros dirige a atenção para tudo que é belo e gracioso: é bravo, audaz, constante e grande caçador: está sempre a deliberar e urdir maquinações, a desejar e a adquirir conhecimentos, filosofa durante toda sua vida; é grande feiticeiro, mago e sofista.
Não vive, propriamente, nem como imortal nem como mortal. No mesmo dia, ora floresce e vive, ora morre e renasce, se tem sorte, graças aos dons recebidos pela herança paterna. Rapidamente passam pelas suas mãos os proveitos que lhe trazem a sua esperteza. Assim, nunca se encontra em completo estado de miséria, nem, tampouco, na opulência.
Oscila, igualmente, entre a sabedoria e a tolice: devido ao seguinte motivo: nenhum dos deuses, como é claro, exerce a filosofia, ou deseja ser sábio, pois que como deus já o é; quem é sábio não filosofa; não filosofa nem deseja ser sábio, também, quem é tolo, e aí reside o maior defeito da tolice: em considerar-se como alguma coisa de perfeito, conquanto, na realidade, não seja nem justa nem inteligente. E quem não se considera incompleto e insuficiente, não deseja aquilo cuja falta não pode notar."
Platão, Banquete, 203b